Auto-compaixão para o pequeno e o grande sofrimento

Nos ensinamentos básicos do budismo encontramos as Quatro Nobres Verdades (no fim deste texto encontra-as enumerados de forma concisa). Simplificando, os Quatro Nobres Verdades afirmam que o sofrimento existe; tem uma causa; tem um fim; e há um caminho que leva à cessação do sofrimento. A noção de sofrimento não pretende transmitir uma visão negativa do mundo. As Quatro Nobres Verdades são como um plano de contingência para lidar com o sofrimento que a humanidade enfrenta - sofrimento de tipo físico ou mental.

Podemos argumentar que o sofrimento tenha um objectivo nobre: a evolução da consciência e a transformação do Ego. O Ego pode estar a dizer: "Eu não devia estar a sofrer" - uma afirmação que confirma que somos uma vitima, e sublinha ainda mais a sensação que estamos em verdadeiro sofrimento.

A finalidade da Alma é outra, é a transformação. A tentativa de evitar ou eliminar o sofrimento vai abrandar o processo de transformação. O resultado perverso da resistência contra o sofrimento e a luta interior contra a dor, é que acaba por criar ainda mais Ego.
 
Aceitar que existe sofrimento vai acelerar o processo de transformação, porque podemos começar a sofrer com cuidado e atenção. Podemos começar a compreender o que é a dor humana.
Confesso que para mim pessoalmente, foi um caminho complicado. Houve momentos em que estava doente, e sofrer por isso. Outros momentos em que a relação com familiares estava péssima, o que me fez sofrer. Muitos outros momentos, com outros sofrimentos, entre dor física, psicológica, raiva, arrependimento, vitimização. Não foi muito linear levar me até à aceitação que a) existe sofrimento humano, que b) sou humana, e por isso, inevitavelmente, c) vou sofrer. Mas quando descobri que é possível entender e abraçar esta humanidade em mim, percebi que não somos obrigatoriamente vítimas do sofrimento humano. Somos também a única pessoa que pode resolver e dissolver esse mesmo sofrimento.

Meditação, aceitação, auto compaixão

A meditação pode oferecer uma porta para a aceitação. Olhando para a dor, sem julgamento, sem outra narrativa associada, podemos começar a ver que o sofrimento não é eterno. Gradualmente a dor mudará de carácter, e entendimento surgirá. Olhando para a dor, podemos começar a ter auto-compaixão, ser amigos de nós próprios e abraçar a nossa humanidade.

Os mestres ensinam que não vale a pena procurar eliminar as dificuldades interiores através da práctica da meditação - essa procura é como perseguir uma ilusão. Sofrimento há de surgir, de uma maneira ou outra. O que se procura desenvolver na meditação é a capacidade de levar a atenção directamente e imediatamente para aquilo que é sentido, e repousar aí, com amor e bondade e com atenção plena.

Quando sentimos emoções difíceis mas ligeiras, esta tarefa parece ser relativamente simples. Os pequenos incidentes do dia-a-dia até são oportunidades óptimas para treinar a auto-compaixão. Estou a falar de disrupções emocionais pequenas, que embora possam ter uma influência naquele dia, não impedem que a vida seja vivida normalmente. Coisas que surgem de uma situação específica: uma reunião em que o teu trabalho foi rejeitado; uma discussão com um amigo; um cliente com uma queixa; o carro que precisa de reparação quando já não há dinheiro para isso - ou simplesmente um "dia-não". Uma solução para estes sentimentos negativos é sentar em meditação, com a disposição do momento, e sim, sentir a emoção. Permitir que ela existe.

Atenção plena, amor incondicional

Pema Chödron chama a isso: encostar-se à emoção. Sentir - e mais nada. Nada de conclusões, ou procura de soluções. Nada de julgamentos. Nada de histórias. Sentir sem desencadear logo uma narrativa através de pensamentos do tipo "sinto isso e a culpa é dele"; "não sou capaz de ter uma boa relação"; "falhei, devia ter feito aquilo de outra maneira"; "isso sempre me acontece"; "os meus pais não souberam educar-me" etc etc. Se este drama pessoal arranca, precisamos de intervir: libertar logo o pensamento e levar a atenção de volta à sensação no corpo, observando o que há para observar - calor, frio, tensão, desconforto, dor difusa aqui ou ali...). A técnica consiste em tornar a observação uma exploração de fundo, descrevendo com precisão as características das sensações.

A atenção plena sem julgamento, sem narrativa, sem drama, funciona da mesma maneira que o amor incondicional. Tal como uma mãe trata o dói-dói do filho depois de ter caído da bicicleta: ela observe, vê sem dramatizar, com toda a sua atenção, a ferida (se ela existe!), limpa, cuida e dá um beijinho no dói-dói. Atenção plena, sem drama. O resultado mais provável é que a dor desaparece e a criança volta a brincar.

Parece que a atenção plena e amor incondicional estimulam o corpo e o metabolismo das células, fazendo com que conseguimos digerir as experiências e voltar a sentir uma energia positiva.

Começar a conhecer melhor a emoção difícil

É claro que há sensações negativas que não desaparecem tão facilmente só porque criámos espaço para sentir. Estas sensações dolorosas mais difusas podem existir por muitas razões - pode ser uma baixa auto-estima ou um conflicto interior recorrente que teima em criar obstáculos e que não sabemos como mudar. Estou a falar do género de mal-estar que parece acompanhar-nos durante grande períodos, como se fizesse parte de nós. Aqui a aproximação de "sentir a emoção e permitir que ela existe" não é suficiente. Começando na mesma com a observação e atenção, precisamos de avançar para mais: uma amizade com a emoção.

O que realmente importe numa amizade é estarmos interessados em quem é o nosso amigo. Uma curiosidade genuíno, caloroso, sem segundas intenções. A nossa dor também gosta deste tipo de atenção. Ao dar atenção sem segundas intenções,  podemos mesmo descobrir que conseguimos gerar um sentimento bondoso e aberto. Em vez de vencidos pela dor, aliamos a ela e encontramos nela uma razão para gerar amor e bondade e auto-compaixão. Practicando a auto-compaixão aprendemos aceitar quem somos e voltar a abrir-nos para a vida.

As Quatro Nobre Verdades

A verdade do sofrimento: na vida existe o sofrimento ou insatisfação. Há sofrimento no nascimento, na doença, no envelhecimento, na morte e em diversas outras circunstâncias as quais todo ser vivo passa.

A verdade da origem do sofrimento: o sofrimento ou insatisfação é causado pelo apego e aversão, que por sua vez são causados pela ilusão de um “eu” separado, de uma identidade permanente e incondicional, de uma concepção essencialista do “eu” e de todos os demais fenômenos. Para Buda, tudo no universo é impermanente e interdependente, logo qualquer noção de uma identidade fixa seria ilusória.

A verdade da cessação do sofrimento: é possível cessar o sofrimento. Se o sofrimento é causado, ao removermos essas causas, removemos também o sofrimento.

A verdade do caminho para cessação do sofrimento: o caminho que leva a cessação do sofrimento é o Nobre Caminho Óctuplo (também conhecido como o caminho do meio): compreensão correta, pensamento correto, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção correta, e concentração correta.



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